Balsa já não é «cidade perdida» e tem projeto de ciência e cultura

Por Bruno Filipe Pires – 18 de Janeiro de 2018 (in Barlavento)

«Havia uma dúvida. Os mais otimistas viam Balsa como uma grande cidade, a maior do país, como foi escrito, maior ainda que Lisboa, ainda que essa visão nunca tenha sido alicerçada em dados científicos concretos. Aliás, essas afirmações não vinham das universidades nem da comunidade científica. Por outro lado, havia a posição contrária, dos mais céticos, que diziam que já fora tudo destruído, e portanto, não valia a pena. A recente polémica das estufas levou a que se fizessem alguns trabalhos de geofísica, bastante consistentes, que demoraram algum tempo, mas que foram conclusivos para dar alguma resposta, cabal, a estas posições antagónicas», começa por explicar João Pedro Bernardes, arqueólogo e professor do Departamento de História Arqueologia e Património da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve. Ao longo dos últimos dois anos, prestou consultadoria científica ao estudo realizado com o acompanhamento técnico da Direção Regional de Cultura do Algarve.

«Demonstrou-se que efetivamente há uma parte significativa que foi destruída, nada há a fazer, mas há ainda uma parte muito bem preservada e que merece um projeto de investigação», revela.

Nos trabalhos foram usados «métodos modernos de radiografar o terreno, não intrusivos, com utilização de um georadar e também um gradiómetro de protões que demonstraram a existência de fortes anomalias. Fizeram-se quatro sondagens e confirmou-se que há ali ruas e um bairro ainda preservado com muros. Há muros que entram pela Ria», revela.

Hoje percebe-se que «Balsa seria uma cidade ribeirinha, no sentido longitudinal. Junto à Ria, onde também a potência de terras é maior, há uma tendência para que estas ao longo dos séculos, se tenham acumulado, e constatamos que ainda há muita coisa preservada».

«Podemos ter mosaicos, muros e alicerces até cerca de um metro de altura. Tendo em conta a monumentalidade, podemos apanhar as bases de um edifício público. E, eventualmente, encontrar estátuas, mosaicos, elementos arquitetónicos tipicamente urbanos. Isso não é frequente», diz.

Com base nesta confirmação, surge a iniciativa «Recuperação e divulgação de uma cidade romana do sudoeste ibérico. Projeto cultural para a coesão social e sustentabilidade local» que une vários parceiros, incluindo a Lais de Guia – Associação Cultural do Património Marítimo e o Centro Ciência Viva de Tavira.

«Pela primeira vez, o que se procura implementar é um projeto de investigação sistemática que possa avaliar, dizer concretamente o que é que foi Balsa e resgatá-la, digamos, quer à fantasia, quer ao esquecimento a que foi votada. Agora, tudo dependerá muito da vontade da população local e da autarquia de Tavira que, penso, será fundamental», diz João Bernardes.

A primeira coisa a fazer será «delimitar a área, definir o perímetro urbano da cidade, selecionar áreas onde se pode tentar perceber quais são os restos de edifícios romanos preservados e a respetiva configuração».

«Parece por vezes aos desatentos, ou aos não especialistas, Balsa parece uma coisa enorme. Na realidade, à escala da província era uma coisa pequena. O que acontece é que à volta deste tipo de cidades há um conjunto de villae ou de grandes casas de gente rica e abastada que poluam os campos em redor. Por isso, dá ideia que é tudo a mesma coisa, um conjunto de vestígios que se prolonga até Pedras d´el Rei. Mas essa é uma leitura errada, porque são coisas distintas».

«A componente talvez mais inovadora do projeto é, talvez, o envolvimento da comunidade local. A ideia é que isto não seja apenas um projeto científico, mas algo para a região. Os algarvios e o país sempre tiveram para com Balsa um carinho especial. É uma cidade maravilha perdida, uma Atlântida à nossa escala. Esse sentimento é por maioria de razão mais próximo das pessoas que vivem ali. Creio que se conseguirmos avançar e criar uma dinâmica, criar um campo arqueológico que atraia estudantes de outras universidades, isso poderia dar os seus frutos. Balsa poderá ser matéria científica para todos. A ideia é envolver as escolas, associações, alunos a fazer campanhas de escavações e aliar a parte pedagógica da cultura material com a parte natural da Ria. Ela é Formosa não apenas pelas paisagens, mas pela riqueza cultural que tem à volta», considera o professor.

«Claro que o ideal seria termos um bolseiro e um investigador a trabalhar em permanência, a recolher materiais, preparar publicações académicas e a fazer palestras», exemplifica.

O arqueólogo Vítor Silva Dias, que conduziu os trabalhos de campo na Quinta da Torre d’Aires, reitera as expetativas do colega. «Balsa esteve hermética para a arqueologia desde a década de 1970. Há um trabalho de investigação de Catarina Viegas sobre os materiais cerâmicos então encontrados, que estão no Museu Nacional de Arqueologia. Houve umas sondagens em 2007, mas trabalhos sistemáticos e continuados com metodologia arqueológica e com objetivos não têm acontecido».

«É natural que nesta fase haja mais questões levantadas do que respostas. O que me deixa muito satisfeito é que os dados arqueológicos que temos documentam perfeitamente a presença da cidade ali, e inclusive, até a prospeção sistemática nos deu dados muito fortes para a presença do Forum, naquela propriedade. Ou seja, agora é mais do que evidente que vale a pena continuar a estudar. Há muita gente que se refere a Balsa como a cidade perdida. Ela já não está perdida. Está encontrada. Quase se exige de nós enquanto comunidade e sociedade, que Balsa deixe de ser um mito e passe a ser um ato de cultura e de ciência», conclui Vítor Silva Dias.

A conferência «Balsa, cidade romana. Informação, o projeto, as ações futuras» contará com a presença de João Pedro Bernardes, Cristina Tété Garcia e Vítor Silva Dias. A entrada é livre, mas sujeita a marcação devido à lotação da sala.

Porto de Balsa intriga investigadores

«Uma escavação na zona da Ria poderá encontrar objetos de madeira preservados. É muito provável que ali haja restos de embarcações romanas», admite João Pedro Bernardes. «A grande vantagem em relação ao ambiente de terra, é que as condições de preservação de materiais, nomeadamente orgânicos, como a madeira, são excecionais», compara. Mas há outros mistérios a desvendar, alguns escondidos à vista. «Aparecem na fotografia aérea algumas marcas na paisagem que indiciam ali grandes estruturas, uma delas, circular. O professor Vasco Mantas da Universidade de Coimbra chamou a atenção para isso. É uma estrutura redonda que poderia ter sido um farol, ou um outro equipamento portuário».

O arqueólogo Vítor Silva Dias, autor dos estudos no terreno, confirma. «É uma estrutura circular que terá cerca de 45 metros de diâmetro». E não é a única. «O possível porto de Balsa, na verdade, situa-se onde fizemos a sondagem 4. Era a zona onde eu depositava mais esperanças. Na verdade, só deu areia. Foi a única sondagem que não demonstrou evidências arqueológicas concretas. Mas acredito que elas estão lá», até porque a prospeção geofísica detetou anomalias, «um possível molhe ou paredão, com 30 metros por 13 de largura. Tentámos identificar um aparente vértice, mas não o conseguimos confirmar. Penso que estaríamos ao lado», diz.

E se mais tarde for encontrada uma embarcação romana? Embora arrisque entrar no campo da especulação, João Bernardes acha que «era preservá-la in situ, seria uma ideia interessante», embora desafiante de concretizar. «Em Cartagena há um grande museu especializado em arqueologia subaquática. Aí há barcos preservados. Mas é sempre difícil, porque a madeira que durou 2000 anos esteve sempre em ambiente anaeróbico, praticamente sem luz, sem oxigénio e muito salinos. Trazer isso para um museu implica retirar o sal, e manter algum tempo em ambientes húmidos antes de aplicar o tratamento final».

Um (futuro) museu romano a céu aberto junto à Ria Formosa

Questionado sobre o que poderia resultar caso o projeto para Balsa avance, João Bernardes diz que «nunca podemos esquecer que isto é propriedade privada. Está arrendada. A parte que tem vestígios está muito condicionada para a prática agrícola. Não se pode fazer grande usufruto dela, até porque coincide com a área de Domínio Público Marítimo e é área da Reserva Ecológica Nacional. É uma zona mesmo ao lado da Ria Formosa. E portanto, até por isso, terá sempre um uso muito condicionado. Daqui depende também muito do que aparecer, das vontades, do proprietário, autarquias e outras entidades».

No entanto, admite que «poderá surgir um núcleo museológico. Obviamente que sim. É uma zona belíssima. Será diferente de Milreu porque a natureza dos vestígios é diferente. Mas imagine, e isso não está fora de causa, que se encontram algumas casas com mosaicos. Seria o ideal para constituir um núcleo museológico, integrado com a própria paisagem, com a produção das ervas aromáticas. Poderia ser criado um circuito que aliasse a cultura com a natureza. São ideias muito prematuras, mas possíveis», admite.

E uma nova Conímbriga? «Não, não vamos encontrar. Esse é um caso excecional à escala nacional por várias razões. Foi abandonada muito cedo, tal como Balsa, no século VII e depois ficou selada até ao século XIX. Conímbriga teve a sorte de ter ali a Universidade da Coimbra e, desde cedo houve investigação e proteção. Foi a Faculdade de Letras até que comprou o terreno para evitar a destruição».

Em Balsa, apesar da polémica lançada há alguns anos, segundo João Bernardes, a produção agrícola atual não destruiu nada. «Não. As estufas não se chegaram a concretizar. Fez-se o sistema de rega que foi até uma profundidade de algumas dezenas de centímetros. Mas foi o ponto de partida para tudo isto. A iniciativa dos vizinhos, independentemente das razões, teve o mérito de apelar à defesa do património».

Datas e metodologias

Segundo o arqueólogo Vitor Silva Dias, os trabalhos em Balsa tiveram duas fases. «Primeiro fizemos uma prospeção sistemática, que é uma batida de campo superficial. Depois avançámos para a prospeção geofísica que incluíram o uso de gradiómetros e georadares. Os dados mais sugestivos originaram a escolha dos locais para as sondagens arqueológicas».

João Pedro Bernardes, arqueólogo e professor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, confirma. «Uma sondagem tem materiais dos séculos I e II. Há uma outra mais tardia que tem materiais dos séculos IV a V. Sabemos que a cidade teve o auge nos séculos I e II e depois começou a decair, entra numa fase de agonia até ao século VI. Nota-se que Balsa estava mais articulada com as cidades da Bética, costeiras da Andaluzia que entram em decadência, a maior parte, a partir de finais do século II», explica.

«Balsa era uma cidade portuária. A sua riqueza vem do porto. Era distinta de Ossónoba, que ganha importância sobretudo quando Balsa começa a decair, nos séculos III a IV».

«Dá ideia que no século I e II, Balsa até pode ter sido mais importante que Ossónoba. É que Ossónoba teria um porto mais isolado. Isso é referido nas fontes clássicas. Em Balsa, o acesso seria mais direto. Os barcos poderiam encostar apenas para abastecer de mantimentos e água e depois seguiam viagem. deixavam ali sempre qualquer coisa, às vezes exótica. Coisas que não eram destinadas a este mercado, mas a outros, como o da Britânia», compara.

Origem de um mito

«Escreveram-se muitas barbaridades. Quer na televisão, quer nos jornais nunca se consultaram os especialistas que trabalharam em Balsa. Nem o Vasco Mantas da Universidade de Coimbra, nem Catarina Viegas que fez um doutoramento sobre Balsa, foram ouvidos. Ouviram quem? Amadores. E depois surgem aquelas ideias espetaculares que aliás depois nos dá muito trabalho a desconstruir, que Balsa é uma cidade maior que Lisboa», lamenta João Pedro Bernardes.

«Essa ideia decorre muito do facto de Balsa ter materiais muito excecionais no contexto nacional. Estes materiais oriundos de Balsa constituíram a reserva e a mostra principal do atual Museu Nacional de Arqueologia. E eram peças completas e intactas».

«Repare esta era uma zona de transição. A partir dos anos 40 do século I, os barcos passavam aqui em trânsito, e faziam escala em direção à Britânia e norte da Europa. Quase tudo o que existia no Império Romano aparece em Balsa».

No século XIX, com Estácio da Veiga, e XX, já com Abel Viana, foram descobertos «materiais excecionais no contexto nacional. Constituíram a reserva e a mostra principal do Museu Nacional de Arqueologia. Estátuas, vidros, peças completas e intactas lindíssimas que vieram das necrópoles de Balsa. Tudo isso contribuiu para criar a ideia de cidade fantástica. Este projeto procura desmistificar isso. As coisas para terem valor não precisam de ser fantásticas».

«Quando estudamos a epigrafia funerária de Balsa, nota-se que há uma grande relação com quem vive nas cidades da Andaluzia. Relações familiares mas sobretudo de comércio. Pessoas que viviam muito do comércio com Itália e o Norte de África. Estou a lembrar-me de um tal Annius Primitivus que enriqueceu tão rapidamente que dedicou uma lápide à deusa Fortuna e pagou um combate de boxe e um combate de barcas à população, possivelmente na Ria Formosa. Isso está lá escrito. Quando me pergunta qual é a riqueza de uma cidade como Balsa, bem, são coisas deste género», diz João Bernardes.

Proprietários autorizam novos trabalhos arqueológicos

«Finalmente, parece que há condições para avançar com um projeto de conservação para Balsa. E porquê? Porque o proprietário do terreno, o arrendatário e as autoridades oficiais demonstram alguma abertura. Desde os anos 1970 houve várias tentativas de implementar projetos, mas morreram todos. Por razões várias», diz João Bernardes. Hoje, os herdeiros têm «outra mentalidade» e vêem na arqueologia não uma ameaça, mas uma oportunidade de valorização.

«Isto é um sítio classificado e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve tem instrumentos que permitem viabilizar alguns financiamentos» para a investigação científica. Em agosto, foi aprovada na Assembleia da República, uma resolução no sentido de recomendar ao governo a investigação e salvaguarda do sítio. «Essa resolução não tem valor vinculativo, mas é uma forma de pressão».

Alexandra Gonçalves felicita projeto

«Por iniciativa da Direção Regional de Cultura do Algarve, iniciou-se em maio de 2017 o procedimento de ampliação e delimitação da área arqueológica de Balsa oficialmente classificada como de Interesse Público. Estabeleceu-se simultaneamente uma Zona Especial de Proteção Provisória. Ficando assim obrigadas a controlo prévio, com parecer da tutela de património, todas as operações urbanísticas que incidam na área arqueológica de Balsa ou se localizem dentro do perímetro da sua zona de proteção», explica Alexandra Gonçalves, diretora regional de Cultura do Algarve.

«Como é de lei, ficam os promotores obrigados a custear intervenções no âmbito da arqueologia preventiva. Os resultados desses trabalhos, que podem incluir prospeções, sondagens e escavações em área, hão-de ir permitindo documentar e preservar os vestígios da cidade romana e compreender a sequência temporal da sua ocupação e a organização do seu espaço urbano, conforme tem sido amplamente referido pelos coordenadores científicos do projeto. Mas para além desses contributos com propósitos preventivos de salvaguarda do património, é muito importante estudar Balsa de maneira integral, no âmbito de um projeto concreto que integre num corpo coerente toda a informação produzida no terreno e o estudo dos objetos conservados em arquivo nas reservas dos museus», reforça.

«Há agora nova informação que possibilita um maior reconhecimento deste património e que em boa hora, também dando resposta aos pressupostos plasmados na Convenção de Faro, neste Ano Europeu do Património Cultural, começa agora a ser dado a conhecer de forma mais ampla à comunidade, que também pode ser uma mais-valia no seu processo de valorização e salvaguarda», conclui Alexandra Gonçalves.


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